Liberdade de imprensa: Angola longe da “zona vermelha”
O ranking mundial da liberdade de imprensa, uma actualização anual do desempenho dos países no domínio midiático, entrou este ano na sua 20.ª edição, com resultados “realistas”, nalguns casos, e “enigmáticos” noutros.
O conteúdo desse trabalho da Repórteres Sem Fronteiras (RSF), organização não governamental sediada em Paris, França, tem servido de ponto de referência nas celebrações do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa (3 de Maio).
Se para alguns países os dados apresentados sobre esse quesito são de fácil compreensão, pela sua aproximação da realidade, para outros tornam-se mais complexos, abrindo espaço para múltiplas leituras e interpretações.
Na edição deste ano, a liberdade de imprensa é definida como “a possibilidade efectiva” de os jornalistas exercerem a sua profissão sem interferências – de natureza política, económica, jurídica e social – nem ameaças à sua segurança física e mental.
A RSF explica que a sua pesquisa consistiu num levantamento quantitativo dos abusos cometidos contra a imprensa e respostas a questionários enviados a centenas de especialistas, entre jornalistas, académicos e defensores de direitos humanos.
Para o caso de Angola, e num aparente contraste com a percepção dominante, a nova classificação confirma a tendência ascendente dos últimos anos, mantendo-se o país muito distante da “zona vermelha” liderada pela Eritreia e pela Coreia do Norte.
O novo mapa reflecte uma subida global de 26 lugares, nos últimos cinco anos, ou uma progressão média de cinco posições por ano.
De um total de 180 países e territórios avaliados pela organização parisiense de defesa da liberdade de imprensa, Angola ocupa o 99.º lugar, com 55,17 pontos, deixando o 125.º posto de 2017.
Após 2017, ano do início das funções do Presidente da República, João Lourenço, na sequência das eleições gerais desse mesmo ano, o país conheceu o seu maior salto nos dois anos seguintes (2018 e 2019), pulando 12 degraus.
Em termos mais concretos, registou um crescimento de 7,5 pontos percentuais no seu indicador da qualidade da liberdade de imprensa, e fechou o ano 2020 com 66,1 pontos.
Na altura, a opinião geral foi quase unânime em encarar tais desenvolvimentos como corolário da abertura ensaiada nas primeiras horas da nova era, cujos resultados, então promissores, mereceram amplo reconhecimento interna e externamente.
Com efeito, Angola saiu do 121.º lugar alcançado em 2018 para o 109.º no ano seguinte, antes de ocupar, sucessivamente, as posições 106.ª, em 2020, e 103.ª, em 2021.
A nível da “Lusofonia africana”, Angola foi o único país que subiu no ranking, com a Guiné-Bissau a perder cinco lugares e Moçambique um, enquanto Cabo Verde manteve a posição anterior.
A curva do índice de liberdade de imprensa viria, porém, a conhecer uma súbita decadência, entre 2021 e 2022, depois do pico observado, nos três anos anteriores.
Entre 2017 e 2020, esse indicador passou de 59,6 para 66,1 pontos antes de recuar para os actuais 57,17 contra os 65,9 de 2021.
Portanto, a recuperação verificada no ranking de 2022 distanciou mais o país da “zona vermelha”, a mais grave das cinco possíveis na metodologia utilizada pela RSF.
Com 28 países no total, figuram nesse grupo países como a Rússia, a Coreia do Norte, a China, o Vietname, a Bielorrússia, o Irão, o Afeganistão, a Síria, a Arábia Saudita, as Honduras, o Iraque, o Kuwait, o Iémen, o Paquistão e a Birmânia.
Identificação e distribuição das zonas no mapa
As cinco zonas adoptadas pela RSF estão identificadas pelas cores verde, amarela, laranja clara, laranja escura e vermelha escura, numa avaliação baseada também em cinco critérios (político, jurídico, económico, sociocultural e de segurança).
Angola está enquadrada no “laranja claro”, ou zona de “situação problemática”, uma área intermédia entre o “amarelo”, correspondente aos países em “situação relativamente boa”, e o “laranja escuro”, referente aos países em “situação difícil”.
O verde representa os países com a melhor classificação mundial, num total de oito, incluindo Portugal, cuja situação é descrita como “boa” para o exercício da liberdade de imprensa, num bloco liderado pela Escandinávia (Noruega, Dinamarca e Suécia).
No extremo oposto, o vermelho escuro indica uma “situação muito grave” que caracteriza os países com a pior classificação de todas.
Cabo Verde, Seicheles, Namíbia, África do Sul, Burkina Faso e Serra Leoa são os seis representantes africanos no grupo “amarelo”, ao lado de gigantes como França, Estados Unidos, Reino Unido, Espanha, Canadá, Austrália e Coreia do Sul.
À excepção do Egipto e do Djibuti, únicos africanos inseridos no “vermelho escuro”, ao lado ainda de Palestina, Omã, Venezuela, Nicarágua, Azerbaijão, Bangladesh, Bahrein, Turcoménia e Laos, o grosso de países africanos está dividido entre os dois “laranjas”.
Das cinco zonas definidas, a do vermelho escuro concentra a grande maioria dos 27 assassinatos e 480 encarceramentos de profissionais da imprensa contabilizados este ano pela RSF.
No ranking africano, liderado pelas ilhas Seicheles, com 83,33 pontos, na 13ª posição mundial, Angola é o 25.º classificado, superando grande parte dos países da África Austral e Central.
Da região austral, exceptua-se a Namíbia (18.º), África do Sul (35.º), as ilhas Maurícias (64.º), o Malawi (80.º), as ilhas Comores (83.º), o Lesoto (88.º), o Botswana (95.º) e Madagáscar (98.º), ao passo que da região central apenas o Congo (93.º) e os Camarões ultrapassam Angola.
O Burundi, actual 107.º mundial, registou a maior ascensão no ranking geral com 40 lugares, seguindo-se as Seicheles, que subiram 39 lugares para ultrapassar a Namíbia, a Alemanha, o Reino Unido, França, a Suíça, o Canadá e a Bélgica, entre outros.
Na 50.ª posição mundial, a Gâmbia superou 35 degraus; o Quénia 33 (69.º), a Côte d’Ivoire 29 (37.º), a Serra Leoa 29 (46.º), o Congo 25 (93.º), a Líbia 22 (143.º), o Rwanda 20 (136.º), o Tchad 19 (141.º), os Camarões 17 (118.º), o Gabão 12 (105.ª) e a Argélia 12 (134º).
As descidas mais acentuadas em África foram o Botswana, actual 95.º mundial que perdeu 57 lugares este ano; Madagáscar com 41 assentos perdidos (98º), Togo com -26 (100.º), Senegal com -24 (73.º), Tunísia com -21 (94º), Malawi com 18 (80.º), Etiópia com -13 (114) e Mali com -12 (111.º).
A nível global, a maior ascensão foi Timor Leste, que subiu 54 lugares para conquistar o 17º posto mundial e a segunda posição da lusofonia, logo a seguir a Portugal, que somou 87,07 pontos na sétima posição contra os 55,36 do Brasil, actual 110.º classificado.
Em sentido inverso, Hong Kong registou a queda mais “estrondosa”, com a perda de 66 lugares, ficando agora na 145.ª posição mundial, muitos atrás de países como Filipinas, Sri Lanka, Colômbia, Brunei, Líbia, Cambodja, Guiné Equatorial e Somália.
Leituras e interpretações desencontradas
Os especialistas aconselham um cuidado especial na leitura e interpretação dos dados do mapa estatístico, sendo que a má compreensão tem estado na origem de aproveitamentos ou distorções diversas.
Parte-se da constatação de que a progressão numérica dos países nem sempre significa melhoria directa na qualidade da liberdade de imprensa, apesar de a pontuação atribuída a este indicador ser determinante.
Assim, a ascensão de um determinado país ou território pode, nalgumas vezes, resultar tão-somente da cedência ou queda de um ou vários outros, criando uma ilusão de melhoria, mesmo quando os valores da pontuação vão no sentido oposto.
De qualquer modo, insistem, a pontuação dos países é determinante para o seu enquadramento nas cinco zonas, sendo a transição de uma cor para outra sempre reveladora de um progresso ou recuo palpáveis, consoante o sentido.
Na sua nota de apresentação, a RSF esclarece que o índice de liberdade de imprensa é medido por uma pontuação de zero a 100, estando o nível alto associado a um valor também alto e vice-versa.
Por seu turno, a pontuação é calculada com base em elementos como a frequência dos abusos cometidos contra os jornalistas no exercício das suas funções, e a qualidade da situação do país na visão de especialistas em liberdade de imprensa.
O Senegal, por exemplo, registou uma das maiores descidas no ranking, mas continua a ser, para a RSF, uma das melhores referências de liberdade de informação no continente, juntamente com a África do Sul.
Esses dois países, refere a RSF, representam uma das melhores “faces” da liberdade de informação num continente onde coexistem “tanto a prolífica imprensa do Senegal ou da África do Sul, quanto o silêncio ensurdecedor dos meios de comunicação privados na Eritreia (179.o) ou no Djibuti (164.o)”.
Por outro lado, considera que, apesar da onda de liberalização dos anos 1990, ainda se vê, muitas vezes, práticas arbitrárias de censura, especialmente na Internet, com cortes ocasionais da rede em alguns países, prisões de jornalistas e ataques violentos.
No entender da organização sediada em Paris, esses actos ocorrem muitas vezes na maior impunidade, “como ilustra o desaparecimento do jornalista maliano Birama Touré, em 2016, que a RSF demonstrou ter sido sequestrado (…) e provavelmente morto enquanto estava em detenção em local secreto”.
Finalmente, considera que o aumento no número de leis que criminalizam o jornalismo online, nos últimos anos, representa “mais um golpe no direito à informação”, e que a proliferação de boatos e desinformação “contribuiu para enfraquecer o jornalismo e o acesso à informação de qualidade”.
Em Angola, a opinião diverge entre a negação de quaisquer melhorias palpáveis na evolução real do gráfico da liberdade de imprensa e o reconhecimento de “avanços” registados sobretudo, nos últimos cinco anos.
A RSF considera Angola como parte de um grupo restrito de países em África que passaram por uma abertura “mais ou menos significativa” do seu espaço mediático, embora persista, nalguns casos, “a repressão às vozes dissidentes”.
Entre as vozes optimistas, destaca-se o reconhecimento de que o país conseguiu manter um ranking ascendente “num contexto pouco favorável” para o exercício da liberdade de imprensa, no Mundo, quando se registam “grandes retrocessos” nesse domínio.
Citando como exemplo o aumento, sobretudo em África, das “prolongadas detenções arbitrárias de jornalistas e a censura no uso da Internet”, os defensores dessa perspectiva acreditam, contudo, nos “avanços” que o país ostenta hoje.
Dados do Ministério angolano da Justiça e dos Direitos Humanos apontam para o aumento, nos últimos anos, no país, da “pluralidade dos órgãos de imprensa, maior abertura, independência e transparência”, bem como ausência de “casos de detenções prolongadas de jornalistas, entre outros”.
Fala-se ainda em diversas instituições internacionais e outros Estados que “têm reconhecido publicamente os avanços em matéria de direitos humanos de Angola”.
O país aprovou, recentemente, uma Estratégia Nacional de Direitos Humanos, no quadro do seu Plano de Desenvolvimento Nacional 2018-2022, enquanto documento orientador da actuação do Governo em matéria de direitos humanos, com base na Constituição e Tratados Internacionais.
Angola já ratificou vários tratados internacionais associados ao exercício das liberdades fundamentais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos de 1986.
Foi ainda ratificada a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1987), ao que se juntam os compromissos assumidos por Angola para a sua eleição a membro do Conselho de Direitos Humanos.
Ainda no plano formal, lembra o Ministério, a liberdade de imprensa vem garantida na Constituição de 2010, através do seu artigo 44.º, que proíbe a sua sujeição à qualquer censura prévia, nomeadamente de natureza política, ideológica ou artística, e obriga o Estado a assegurar o pluralismo de expressão, a diferença de propriedade e a diversidade editorial dos meios de comunicação.
O Estado obriga-se igualmente a assegurar “a existência e o funcionamento independente e qualitativamente competitivo de um serviço público de rádio e de televisão”.
Mais recentemente, o novo Código Penal Angolano (CPA) de 2020 introduziu uma norma punitiva do atentado à liberdade de imprensa, ou seja, quando alguém impeça ou perturbe a produção e distribuição de publicações periódicas e emissões radiotelevisivas.
No seu artigo 226.º o CPA reprime igualmente a apreensão ou danificação de materiais necessários ao exercício da actividade jornalística, expondo também o autor à responsabilização civil.
Mas alguns sectores da imprensa angolana apontam o medo e o excesso de zelo nas redacções, a intimidação de jornalistas por via de detenções e a criminalização da actividade jornalística como alguns dos males que a classe enfrenta enquanto obstáculos ao exercício pleno da liberdade de imprensa, no país.
Para Luísa Rogério, antiga secretária-geral do Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA) e actual presidente da Comissão da Carteira e Ética (CCE), a “censura explícita” faz com que a Angola que a mídia apresenta “não pareça muito real”.
Num dos seus pronunciamentos por ocasião do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa, Rogério lembra que, em 2017/2018, “ficámos todos muito encantados, porque os media passaram a publicar assuntos que até ao momento eram tabus”.
Por seu turno, o presidente do Instituto para a Comunicação Social da África Austral (MISA-Angola), André Mussamo, também acredita que o país registou “recuos” no tocante à liberdade de imprensa, “nas últimas três décadas” e por várias razões, dados que, entretanto, contrastam com as novas projecções internacionais.
A primeira edição do ranking da liberdade de imprensa promovido pela Repórteres Sem Fronteiras foi lançada, em 2002, quando Angola apareceu na 93ª posição, com 30,7 pontos, antes de passar para o 97.º lugar, em 2003, 91.º, em 2004, e 76º, em 2005.
Até agora, o desempenho de 2005 é o mais elevado, e o de 2012 o mais baixo, quando Angola ocupou o 132.º lugar, representando uma queda de 16 lugares no intervalo entre as eleições gerais deste ano e as anteriores de 2008, ano em que foi 116.º classificado.