REA impacta no preço da farinha de trigo

Os preços dos principais produtos da Cesta Básica, em particular da farinha de trigo, continuam a baixar em Angola, como resultado, entre outros factores, da entrada em funcionamento da Reserva Estratégica Alimentar (REA).

Só nas últimas três semanas, o custo da farinha de trigo, em concreto, fixou-se entre os 11 mil e os 22 mil kwanzas, no caso dos sacos de 25 e 50 kg, respectivamente.

A ANGOP constatou, recentemente, que o preço do principal insumo utilizado na produção de pão e bolos varia consoante a tipologia, o local e a quantidade de sacos a serem adquiridos pelos clientes, particularmente nas grandes superfícies comerciais.

A título de exemplo, o saco de trigo da marca Madrugada (50 kg) custa 20 mil e 800 kwanzas num dos armazéns do município do Cazenga (IFA), representando uma redução de 700 kwanzas em relação ao mês de Fevereiro, em que o produto custava 21 mil e 500.

Por sua vez, o trigo Gazela do Norte (50 kg) está a custar 20 mil e 600 kwanzas, contra os 21 mil e 800 praticados em Fevereiro, num dos armazéns localizados nos arredores do antigo mercado da Estalagem, no município de Viana.

Entretanto, contrariamente a estes dois estabelecimentos comerciais referenciados, o preço do trigo regista tendência crescente nos armazéns do mercado do Km 30, município de Viana, província de Luanda, onde o saco da marca Primeirá (50 kg) está a custar 21 mil e 600 kwanzas, contra os 20 mil e 500 do mês de Março.

Segundo o assistente de um dos estabelecimentos comerciais daquele mercado, Filipe Kupungwa, o cliente que compra 100 ou mais sacos, por exemplo, beneficia de um desconto de 100 kwanzas por cada saco.

Sem revelar as reais motivações da subida do preço da farinha de trigo naquele espaço, explicou que, nos últimos dias, tem-se verificado escassez deste produto no mercado, facto que impossibilita os clientes de comprarem grandes quantidades.

Ainda na mesma área comercial, o saco de farinha de trigo de marca Stallion está a ser comercializado a 21 mil kwanzas num outro estabelecimento comercial de Viana, cujos responsáveis rejeitaram gravar entrevista.

Naquele armazém, a farinha com a tipologia L’aigle du Nord está a ser comercializada a 22 mil kwanzas, enquanto a Madrugada tem o preço de Kz 21 mil e 500.

Num outro armazém adjacente ao mercado do Km 30, o trigo de marca Primeirá tem o custo de 21 mil e 100 kwanzas, contra os 22 mil e 100 de Fevereiro último.

Face à oscilação do preço do saco de farinha de trigo nos armazéns, o kg deste produto nos mercados a céu aberto ronda, actualmente, os 350 kwanzas, contra os 300 praticados nas últimas semanas.

Luzia António, revendedora há 12 anos, no mercado do Km30, confirmou que até ao princípio de Março comprava o saco de trigo a 20 mil kwanzas e revendia o kg a 300, mas, nos últimos dias, o preço alterou para 22 mil/saco de 50 kg.

Florinda Cristóvão, que comercializa produtos diversos há 28 anos, no mercado do “Asa Branca”, diz que em Janeiro e Fevereiro o saco de trigo custava 20 mil kwanzas, com uma subida para 21 mil e 300.

Porém, o saco de 50 kg é vendido a 19 mil e 300 kwanzas, a partir da fábrica Kikolo-Moagem (fonte primária), segundo a administradora executiva da mesma, Arieth Mendonça.

Em declarações à ANGOP, a responsável daquela unidade fabril revelou que “não houve alteração do preço da farinha de trigo, a partir da fábrica”.

Entretanto, a Reserva Estratégica Alimentar destaca que o preço da farinha de trigo (25 kg) baixou de 23 mil e 33 kwanzas para 11 mil e 400 kwanzas, comparativamente a Novembro de 2021, período em que não tinha sido criada a REA, activada a 21 de Dezembro.

Essa realidade coincide com o preço praticado num dos supermercados da Avenida Rei Katyavala, município de Luanda, onde o saco de farinha de trigo de 25 kg “Tio Lucas” está a ser comercializado a 11 mil e 520 kwanzas, notando-se um adicional de 120.

A baixa do preço do trigo, em particular, surge três meses depois da entrada em funcionamento da Reserva Estratégica de Angola (REA), que tem o propósito de regular o mercado e influenciar a baixa de preços de produtos essenciais da cesta básica.

A REA é uma iniciativa do Executivo angolano, que numa primeira fase prevê adquirir, armazenar e distribuir aos comerciantes grossistas até 354 mil toneladas de bens alimentares, aumentando progressivamente para até 520 mil toneladas de produtos.

Além da importação, boa parte destes bens serão produzidos e transformados no país, prevendo-se um impacto na redução dos preços em até 5% para o consumidor final.

Paralelamente ao REA, a queda dos preços dos produtos da cesta básica ocorre seis meses depois de o Governo suspender o pagamento dos direitos aduaneiros, bem como reduzir a taxa do Imposto sobre Valor Acrescentado (IVA) de 14 para 7% nos bens de amplo consumo.

As duas medidas, em vigor desde último trimestre de 2021, visam aumentar o poder aquisitivo das famílias e assegurar a oferta de produtos essenciais, incidindo no trigo em grão, na farinha de trigo, no pão, arroz, na farinha de milho, fuba de bombó, entre outros bens.

Produção local de trigo satisfaz mercado

Apesar dos industriais nacionais ainda dependerem totalmente da importação de matérias-primas para a transformação da farinha de trigo, a oferta deste produto satisfaz a procura do mercado interno, estimada em 650 mil toneladas/ano.

Segundo a Associação de Produtores de Farinha de Trigo de Angola (AFPTA), os três maiores produtores que compõem esta agremiação têm capacidade instalada para produzir até 900 mil toneladas/ano, registando um excedente de 250 mil toneladas.

Contribuem para essa produção os três associados da AFPTA, designadamente as Grandes Moagens de Angola (GMA), Sociedade Industrial de Moagem – Kikolo, instaladas em Luanda, assim como a Carrinho Empreendimentos, em Benguela.

“Embora a produção esteja a depender de vários factores, como a importação de matérias-primas, estamos a produzir no máximo da capacidade instalada, disponibilizando quantidades suficientes para o mercado nacional”, assegura o presidente da AFPTA, César Rasgado.

Segundo o responsável, com a actual produção, somente as três fábricas têm um superavit/excedente de cerca de 250 mil toneladas, tendo em conta que o consumo interno ronda as 650 mil toneladas/ano.

Porém, mesmo com a produção local, dados oficiais do Governo angolano ainda indicam que o país gastou, em 2018, cerca de 300 milhões de dólares na importação de perto de 500 mil toneladas de farinha de trigo.

Paralelamente à importação da farinha, os industriais nacionais também importam directamente dos principais produtores mundiais o trigo em grão, como o Canadá, França, Alemanha, EUA, Cazaquistão e Austrália.

Falta de clientes inibe produção

Sendo o segundo cereal mais cultivado no mundo, depois do milho, o grão de trigo produzido em Angola “não era valorizado nem comprado”, pelo menos nos últimos sete anos, pelos industriais nacionais, que preferiam a importação desta matéria-prima.

Sem revelar as razões da importação do trigo, o fazendeiro Alfeu Vinevala, maior produtor deste cereal no país, denunciou que os transformadores de farinha ainda optavam por importar esta matéria-prima, em vez de usarem os insumos produzidos localmente.

Em entrevista à ANGOP, o também empresário apontou a falta de mercado para a venda do grão produzido no país como uma das dificuldades que tem inviabilizado o aumento da produção nacional desta commodity, nos últimos anos.

Além disso, o produtor reitera a escassez e a alta do preço dos fertilizantes, assim como o excesso de burocracia na concessão de crédito e a falta de máquinas para a colheita do trigo como outras condicionantes que “emperram” o aumento deste insumo em Angola.

Segundo a fonte, a Fazenda V.N. Hernest & Filhos, Lda está há mais de sete anos a produzir o grão de trigo, mas só em 2021 conseguiu vender a sua produção.

Esclareceu que a venda foi feita ao Ministério da Agricultura e Pescas, que adquiriu boa parte do produto e forneceu a outros produtores, para multiplicar o cultivo deste cereal no país.

Perante este cenário, a AFPTA e a Fazenda V.N. Hernest & Filhos assinaram recentemente, em Luanda, um memorando de entendimento que visa incentivar o cultivo e apoiar o escoamento de trigo do campo para às moagens associadas.

Com esse acordo, a produção de farinha de trigo no país passará a contar com o trigo em grão cultivado em Angola, segundo o acordo rubricado.

Em 2021, a Fazenda Vinevala, situada no município do Chinguar, província do Bié, colheu cerca de mil toneladas de trigo, cifra abaixo das 2 mil toneladas previstas no mesmo período.

De acordo com Alfeu Vinevala, a meta da colheita não foi alcançada devido à estiagem que assolou a região, em 2021.

No presente ano agrícola, avançou, a fazenda já plantou trigo numa área de perto de 10 mil hectares, cuja colheita está prevista para Junho ou Julho próximo. Em média, o agricultor prevê colher duas toneladas/hectar, no mínimo.

Caso se concretize esta meta, o fazendeiro poderá colher 20 mil toneladas de grãos de trigo na presente safra, iniciada em Fevereiro último.

Com um incremento da extensão das áreas de cultivo nas localidades de Chinguar, Chipeta (Catabola) e Camacupa, Alfeu Vinevala prevê produzir 40 mil toneladas/ano, a longo prazo, contando também com novas áreas de cultivo, nas províncias de Malanje e Cuando Cubango.

A par disso, a Fazenda Vinevala também apoia os outros produtores, que neste ano cultivaram mais de três mil hectares, no município de Chinguar.

“Nós temos solos férteis e capacidade para produzir o grão de trigo em grande escala, a médio prazo, superando a produção dos países que, até ao momento, fornecem este cereal a Angola”, comentou.

Entre várias culturas, a Fazenda V.N. Hernest & Filhos ou Vinevala destaca-se também no cultivo do milho e da batata-rena em grande escala.

Com a criação de mais de três mil postos de trabalho, a fazenda está presente nos municípios de Chinguar, Andulo, Catabola e Camacupa (Bié). Além do Bié, o grão de trigo é cultivado nas províncias do Huambo, Huíla e Cuanza Sul.

Segundo o Gabinete de Estudos, Planeamento e Estatística (GEPE) do Ministério da Agricultura e Pescas (Minagrip), as quatro províncias produziram 8 mil e 100 toneladas de trigo em grão, na campanha agrícola 2020-2021.

Essa produção representou uma redução de mil e 268 toneladas (14%), em relação à safra 2019-2020, em que se registaram 9 mil e 368 toneladas.

No período em análise, a província do Huambo liderou a lista de produção, com 4 mil e 865 toneladas, na campanha 2020-2021, contra 5 mil e 486 toneladas da época anterior. A Huíla produziu 2 mil e 265 toneladas, menos 624 (22%) em relação ao período 2019-2020.

Em último lugar está a província do Cuanza Sul, que cultivou 243 toneladas, registando um aumento de quatro toneladas (2%), comparativamente ao ano agrícola 2019-2020.

Impacto da guerra Rússia/Ucrânia no preço do trigo

Entretanto, há mais de 30 dias de guerra entre a Rússia e Ucrânia, segundo e quarto maiores exportadores do grão de trigo no mundo, respectivamente, os preços das principais commodity (matérias-primas) no mercado internacional continuam a subir vertiginosamente, com maior realce para este cereal.

Com um peso de cerca de 30% do fornecimento mundial do trigo, o bloqueio dos portos ucranianos e as sanções internacionais impostas à Rússia são apontados como as principais razões da subida dos preços dos insumos e de produtos acabados no mercado global.

Em consequência da guerra entre Rússia e Ucrânia, por exemplo, o preço do trigo na Bolsa de Chicago (EUA) bateu o recorde histórico de 12,94 dólares por bushel (unidade de medida do trigo – 27kg), em Março último, segundo a Agência France Press (AFP).

A marca supera a cotação atingida em Março de 2008, de 12,83 dólares das commodities. Desde o início do conflito, o trigo já subiu 46,25% em Chicago.

Por conta disso, embora Angola não importa directamente o trigo em grão da Rússia e Ucrânia, a guerra entre os dois países acaba por elevar, particularmente, o preço da farinha e de outros produtos dependentes deste insumo.

Mesmo a produzir no máximo da sua capacidade, Angola ainda poderá registar a aceleração do aumento do preço da farinha de trigo no mercado nacional, devido à total dependência de importação de insumos, segundo especialistas.

De acordo com o economista José Lumbo, a subida do preço da farinha de trigo no país, a médio prazo, poderá ser cada vez mais notória, pelo facto de Angola ter “fraca produção e excessiva importação de produtos acabados e matérias-primas”.

“Com o conflito entre a Rússia e Ucrânia, acreditamos que os outros países produtores e exportadores de grãos de trigo, como a China, Índia e EUA, não terão capacidade de atender a demanda mundial”, vaticinou.

Este facto, defendeu o também especialista em mercado de capitais e finanças públicas, provocará a subida do preço da farinha de trigo e, consequentemente, o valor do pão e outros produtos cuja principal matéria-prima é o trigo, em Angola.

Adicionalmente, José Lumbo aponta a alta dos preços dos bens essenciais para o consumo no mercado mundial como factor que agrava a perda do poder de compra dos angolanos, devido à inflação importada.

Quem também prevê o aumento generalizado dos preços de produtos importados por Angola é o economista Olavo Ferreira, que justifica a sua opinião com o facto de o país importar a maior parte dos bens consumíveis, como o trigo e arroz.

Para o perito em economia e gestão empresarial, o corte no fornecimento de bens e serviços essenciais da Rússia e Ucrânia representa, em última instância, o aumento generalizado de preços dos produtos no mercado (inflação) mundial, em geral, e angolano, em particular.

Olavo Ferreira recorda que muito dos parceiros ou fornecedores de Angola também têm os seus parceiros, portanto, qualquer choque negativo que houver entre os operadores atingirá todos os exportadores e importadores, impactando na oferta de bens e serviços.

“A curto prazo, teremos queda não acentuada na oferta, diminuição ligeira do poder de compra e redução da confiança do consumidor, enquanto a médio prazo poderão aumentar as taxas de juros, com todas as suas implicações que afugentam os investidores”, sustentou.

Perante este quadro, adiantou Estêvão Catunda, é necessário que se façam investimentos sustentáveis na produção nacional, para que Angola possa reduzir o impacto negativo dos choques externos na cadeia produtiva.

Para tal, avança o especialista, é fundamental a elaboração de uma estratégia nacional, para que se alcance a produção em grande escala, a médio e longo prazo.

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