Discurso do PR no dia de Libertação da África Austral

PRESIDENTE DA REPÚBLICA, JOÃO LOURENÇO. FOTO: CEDIDA PELA FONTE

PRESIDENTE DA REPÚBLICA, JOÃO LOURENÇO.
FOTO: CEDIDA PELA FONTE

 

 

 

 

 

 

 

 

 

26 Março de 2019 | 12h32 – Actualizado em 26 Março de 2019 | 13h18

Íntegra do discurso pronunciado sábado (23), no Cuito Cuanavale, província do Cuando Cubango, pelo Presidente da República, João Lourenço, por ocasião do dia de Libertação da África Austral, 23 de Março.

Cuito Cuanavale, 23 de Março de 2019.

-Excelências Chefes de Estado e de Governo da África Austral;

-Caros Combatentes da Batalha do Cuíto Cuanavale;

-Ilustres Convidados;

-Minhas Senhoras, Meus Senhores,

Ao nos deslocarmos hoje, 23 de Março, a esta localidade do Cuíto Cuanavale antes desconhecida, nós, os Chefes de Estado, de Governo ou seus representantes dos países desta nossa região da África Austral, bem como da Rússia, de Cuba, e de Embaixadas acreditadas no nosso país, pretendemos com este gesto render uma singela homenagem a todos os combatentes da liberdade que pereceram nesta batalha, assim como às populações que sofreram igualmente as consequências da invasão das tropas do exército sul-africano do regime do “apartheid”.

Viemos celebrar uma data histórica não só para a África Austral, para o nosso continente mas também para o Mundo, pela importância que assume no contexto da luta global que o Mundo travou durante anos contra o “apartheid”, regime segregacionista que defendia a supremacia branca sobre todas as demais etnias e culturas que habitavam não só o território sul-africano mas de uma forma geral o território dos países da nossa região, a África Austral.

Neste local em que hoje nos encontramos, foi derrotado o exército do regime racista sul-africano, abrindo-se assim as portas para a Independência da Namíbia, para a libertação de Nelson Mandela e, consequentemente, para o fim do “apartheid” e para a paz e a estabilidade política e económica de toda a região.

Por essa razão, os países membros da SADC decidiram, por unanimidade, adoptar o 23 de Março como o Dia da Libertação da África Austral. Com essa decisão, foi prestada uma merecida homenagem aos valorosos combatentes angolanos que, com coragem e determinação, enfrentaram e venceram a máquina de guerra do “apartheid”, e foi exaltada também a irmandade e solidariedade dos nossos povos.

São esses laços fraternais e solidários, forjados num passado de resistência ao racismo, à opressão e à segregação racial, que pretendemos consolidar no presente e projectar no futuro, através do desenvolvimento, do progresso social e do bem-estar das nossas populações.

A República de Angola sente-se orgulhosa por este feito histórico, que pôs fim ao mito da invencibilidade das forças do “apartheid”, ter sido simbolicamente adoptado como o Dia da Libertação da África Austral e reitera os seus agradecimentos a todos os Estados membros da SADC por terem tomado tão justa decisão.

Estão aqui presentes alguns dos principais protagonistas desta relevante saga histórica, que realizaram actos de coragem, heroicidade e determinação.

Infelizmente, entre os ausentes, estão alguns dos melhores filhos dos nossos países, que perderam a vida ou ficaram mutilados e traumatizados para sempre.

No entanto, todos eles se mantiveram firmes e com elevado sentido de dever nesta localidade do Cuíto Cuanavale, de Dezembro de 1987 a Março de 1988, cumprindo a nobre missão de proteger vidas humanas, de garantir a soberania e integridade do nosso território e de defender não só a Pátria angolana, mas também a liberdade e dignidade de toda África.

Estava em causa o nosso destino como povos irmãos e solidários. Foi esse sentimento que motivou as nossas unidades militares a defender a todo o custo o território nacional, porque em caso de serem derrotadas, vingaria o plano estratégico do regime do “apartheid”, que consistia em legitimar a base do poder da minoria branca, destruindo o ANC da África do Sul, eliminando a SWAPO da Namíbia e forçando os países da região a integrarem uma “constelação de Estados” controlada pelo “apartheid” a partir de Pretória.

Todo esse plano macabro fracassou, graças também à tenacidade e perseverança dos povos, unidos numa Linha da Frente criada em 1976 com o objectivo de coordenar esforços e estratégias de apoio aos Movimentos de Libertação da África Austral.

A força e capacidade demonstradas no combate pela liberdade e independência levou a comunidade internacional a reconhecer essa aliança como a principal força de oposição ao “apartheid”.

Além dessa preocupação de ordem política e militar, os Estados da Linha da Frente tinham também nas suas prioridades o desenvolvimento económico e social dos seus povos.

Era necessário fazer frente aos perigos da política agressiva, militarista e expansionista do “apartheid”, mas ao mesmo tempo, garantir o progresso e o bem-estar das respectivas populações.

Foi nesse contexto que os dirigentes dos países da Linha da Frente decidiram criar a 1 de Abril de 1980, em Lusaka, capital da Zâmbia, a Conferência para a Coordenação e Desenvolvimento da África Austral (SADCC), no sentido de harmonizar as políticas económicas dos países da região, de modo a reduzir a sua dependência económica em relação ao regime do “apartheid”.

Esta foi uma luta solidária entre nossos países e povos e com esse espírito a SADCC evoluiu para a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), capaz de garantir o desenvolvimento sustentável dos nossos países.

É neste mesmo quadro de irmandade e solidariedade entre nós, que estamos aqui reunidos numa data que envolve todos os países e povos da região Austral de África e que deve ser recordada e celebrada pela presente e futuras gerações, para que nunca sejam esquecidos os sacrifícios consentidos, para hoje podermos trilhar juntos os caminhos da paz, da segurança, da liberdade, da justiça e da democracia.

Excelências,

Minhas Senhoras, Meus Senhores

Nossa vitória comum sobre o regime do “apartheid” remonta aos anos 60 quando a Tanzânia e a Zâmbia acolheram o MPLA de Angola, a FRELIMO de Moçambique, a ZANU e a ZAPU do Zimbabwe, para a partir desses países treinarem seus combatentes e organizarem a luta armada de libertação nacional que os levaria a alcançar a Independência Nacional na década de 70.

O nosso reconhecimento ao Presidente Julius Nyerere e ao povo tanzaniano, ao Presidente Kenneth Kaunda e ao povo zambiano, por tudo quanto fizeram pela causa da libertação dos nossos povos do colonialismo.

Com a queda do colonialismo, restava aos africanos se livrarem de um mal igual ou pior que o colonialismo, o “apartheid” da África do Sul, que oprimia não só o povo sul-africano mas ameaçava estender os seus tentáculos a toda a região Austral de África impondo o mesmo modelo de governação segregacionista.

Nessa luta contou sobretudo a determinação do povo sul-africano liderado pelo ANC e seu braço armado, assim como do povo namibiano liderado pela SWAPO e seu respectivo braço armado.

Mas se por um lado reconhecemos que esta vitória sobre o regime do “apartheid” começou a ser incubada, forjada, no passado da luta anti-colonial, sem sombra de dúvidas que foi aqui no Cuíto Cuanavale, com a batalha com o mesmo nome, que o 23 de Março de 1988 se tornou no decisivo ponto de viragem, quando Pretória percebeu que os seus modernos tanques de guerra ficaram carbonizados e retorcidos, quando começou a receber os caixões com os restos mortais daqueles a quem se lhes tinha inculcado o mito da invencibilidade do exército do “apartheid”.

De Dezembro de 1987 a Março de 1988, a correlação de forças no terreno tinha mudado, a realidade era bem diferente, a pressão sobre o regime, das famílias que perderam para sempre seus filhos, mudou a opinião pública interna sobre a guerra contra Angola e a sobrevivência do próprio “apartheid” começou a ser posta em causa também a nível internacional.

Nos documentos secretos que têm vindo a ser desclassificados e divulgados, os próprios altos comandos das forças do “apartheid” envolvidas na batalha do Cuíto Cuanavale, no Triangulo do Tumpo e em Samaria, reconhecem que a derrota do exército invasor se deveu, em primeiro lugar, à determinação, tenacidade, bravura e patriotismo dos valorosos combatentes das FAPLA, lideradas pelo seu Comandante-Em-Chefe, na altura o Presidente José Eduardo dos Santos.

Desde meados dos anos 40 que se sabe que o espaço que vai entre o arquipélago das Bermudas no Caribe, o sul da Flórida e a cidade de San Juan em Porto Rico, constituindo um triangulo virtual a que se convencionou chamar o Triângulo das Bermudas, constitui uma zona perigosa para as marinhas e para a aviação, pelo elevado número de navios naufragados e aviões desaparecidos misteriosamente naquele oceano, pela força da Natureza.

As forças e meios do exército sul-africano que ousaram penetrar no Triângulo do Tumpo aqui no Cuíto Cuanavale, pelo elevado número de tanques, meios blindados, canhões, outro tipo de técnica militar destruídos ou capturados e homens abatidos ou feridos nessa localidade, engolidos não pela força da Natureza mas pela bravura dos angolanos das FAPLA, encontraram aqui em plena África o seu triângulo das Bermudas.

Cuíto Cuanavale foi a maior batalha convencional a sul do Sahara depois da Segunda Guerra Mundial, aquela que envolveu de ambas as partes o maior número de jactos caça-bombardeiros e de helicópteros, de tanques de guerra e outros veículos blindados, o maior número de peças de artilharia de grande calibre e alcance.

O exército inimigo sofreu pesadas baixas materiais e humanas, entre tanques de guerra Oliphant, carros de assalto Ratel, transportadores Samil e Unimogs draga-minas, canhões auto-propulsados G-5 e G-6 em tal número que levou o alto comando militar sul-africano a suspender as operações Hooper e Packer nas quais depositavam grande esperança caso fossem bem sucedidas.

Levou ainda à substituição forçada de vários comandantes da frente de combate, casos do 61º Batalhão Mecanizado e outros, pelo elevado número de baixas sofrido, pelo mau desempenho na condução das operações, pela incapacidade de romper as linhas de defesa da 25ª Brigada das FAPLA e outras posições estrategicamente bem defendidas.

Derrotado o exército do regime do “apartheid”, seguiu-se uma fase de negociações sobre o processo de paz em Angola e sobre a regularização do conflito que então grassava sobre o Sudoeste de África por forma a estabelecerem-se as bases sobre as quais se resolveu a questão da Independência da Namíbia e do restabelecimento da Paz em Angola.

Com esta finalidade, a ronda de negociações entre delegações de Angola, Cuba, África do Sul e Estados Unidos da América tiveram lugar no mês de Maio de 1988, em Londres e em Brazzaville, seguindo-se no Cairo, Nova Iorque e Genebra, onde se chegou finalmente a um protocolo sobre um conjunto de princípios, tendo-se anunciado um cessar-fogo provisório.

As partes concordaram em estabelecer uma data limite para a assinatura de um acordo tripartido entre Angola, África do Sul e Cuba. A 1 de Setembro, as tropas sul-africanas concluíram a sua retirada do território angolano, e a África do Sul e a SWAPO concordaram também com a imediata entrada em vigor de um cessar-fogo na Namíbia.

A 13 de Dezembro de 1988, foi assinado o Protocolo de Brazzaville entre os governos de Angola, Cuba e África do Sul e no dia 22 em Nova Iorque foram assinados o Acordo Tripartido entre Angola, Cuba e África do Sul para a paz em Angola e para a Independência da Namíbia, historicamente conhecidos como “Os Acordos de Nova Iorque”, e o Acordo Bilateral entre Angola e Cuba para a retirada total das forças cubanas de Angola, que já havia iniciado aos 25 de Outubro.

Foi, portanto, a derrota do exército racista sul-africano no Cuíto Cuanavale e a posterior capitulação do regime do “apartheid”, que tornaram possível a implementação da Resolução 435/78 do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, na base da qual se efectivou o processo da Independência da Namíbia e a libertação de Nelson Mandela.

Nesse esforço de guerra e resistência, Angola contou com o inquestionável apoio da então União Siovética e da República de Cuba, cujos filhos verteram o seu sangue no nosso solo pátrio.

Seria uma enorme ingratidão não reconhecer e deixar de agradecer hoje o contributo decisivo que eles deram para o fim do “apartheid” e para a libertação da África Austral.

Excelências,

Caros Convidados,

Minhas Senhoras, Meus Senhores

A Nação angolana presta uma merecida homenagem a todos os combatentes que nas várias frentes lutaram pela liberdade e independência da África Austral.

Para que os seus sacrifícios e o sangue derramado não tenham sido em vão, os nossos Estados pugnam hoje pela paz e democracia, pelo desenvolvimento económico e social dos nossos países.

Nossos países constroem hoje sociedades multirraciais onde o que conta não é a cor da pele ou dos olhos, mas o simples facto de sermos todos seres humanos que devem ter as mesmas obrigações, os mesmos direitos e as mesmas oportunidades.

Foi por essa razão que lutámos pela nossa Independência e para a defesa da soberania e integridade do território nacional.

Excelências

Chefes de Estado e de Governo

Estimados Convidados

Heroicos Combatentes do Cuíto Cuanavale

Minhas Senhoras, Meus Senhores

Cuíto Cuanavale é um ponto localizado no Cuando Cubango em Angola mas a batalha que aqui teve lugar nos anos de 1987/88 e que definiu o nosso destino comum livre do “apartheid” é por isso um património histórico comum a todos os povos da África Austral.

Com estas palavras, agradeço a presença de todos nesta cerimónia solene e saúdo o Dia da Libertação da África Austral.

Muito Obrigado!

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